
O Colóquio Internacional «50 Anos de Dipanda. A imprensa africana e a democracia» terá lugar a 28 e 29 de Maio, numa iniciativa que junta cerca de 20 organizações de vários países. Alice Santiago Faria, Adelaide Vieira Machado e Sandra Ataíde Lobo, (membros da Comissão Organizadora) conversam sobre a importância de analisar e repensar a história da imprensa angolana e de outros países, o seu papel nos processos de independência e a comunicação entre jornalistas, escritores e outros intelectuais durante o período colonial.
Em 2025, assinala-se os 50 anos da independência de Angola e os 180 anos do aparecimento da imprensa angolana. Como contribuíram os jornalistas e outros autores ligados aos media angolanos para o processo de independência ao longo dos anos?
A pergunta remete-nos para o foco na democracia que escolhemos para assinalar essas efemérides com a iniciativa do colóquio, tendo, não ocasionalmente, escolhido colocar no mesmo plano de análise o colonial e o pós-colonial. A Comissão Organizadora que integramos – com a Directora da Biblioteca Nacional de Angola, Diana Afonso Luhuma, a antiga directora do Arquivo Nacional de Angola, Alexandra Aparício, João Pedro Lourenço e Bruno Júlio Kambundu do ISCED/Luanda e Aurora Alamada e Santos do IHC – concordou que seria importante que esse foco não se restringisse a Angola, antes abrangesse os outros PALOP anteriormente sujeitos ao domínio colonial português, cujas relações e circulações foram seculares, importando aprofundar o seu conhecimento.
É, de facto, importante destacar a imprensa periódica, um espaço talvez menos estudado…
O Grupo Internacional de Estudos da Imprensa Periódica Colonial do Império Português (GIEIPC-IP) tem insistido na importância de destacá-la, por razões diversas, entre elas a sua longevidade e o facto de a comunicação social em geral e o jornalismo em particular ter nascido na imprensa periódica, a qual serviu de modelo para os outros media. Isto a ponto de imprensa e jornalismo se terem com o tempo confundido.
Há outros aspectos importantes, nomeadamente a forma como a escrita impressa e a organização dos espaços nos periódicos moldaram a função mediadora da escrita e a própria escrita impulsionando novos géneros, ou, ainda, as implicações da periodicidade na criação e organização dos discursos e na própria ideia de discurso acabado.
Acresce que o periódico não reduz a sua audiência ao leitor e impacto ao momento da sua publicação. Até tarde no século XX, sobretudo em sociedades menos alfabetizadas é frequentemente lido e comentado em voz alta. Não carece de tecnologias especiais para chegar à sua audiência por mais distante que seja, embora o tempo que demora a chegar dependa das vias de comunicação, o que não deixa de ser interessante para pensar a relação entre o jornal e a actualidade. Mais, ao contrário da rádio e da televisão, os periódicos têm uma materialidade que os tornam susceptíveis de serem facilmente apropriados pelos leitores para os citar, coleccionar, recortar e reorganizar ao sabor dos seus interesses, colocar em diálogo com textos publicados em outros periódicos. A partir dessas recolhas, os leitores constroem as suas próprias «bases de dados» de informação e reflexão e colocam-nas em circulação. É frequente encontrarmos testemunhos desses usos em bibliotecas e arquivos pessoais, para além dos testemunhos legados em todo o tipo de publicações.
O espaço público é também resultado da imprensa?
A imprensa, na sua diversidade, foi fundamental na construção da esfera pública, pelas notícias, conhecimentos, debates e combates da mais diversa ordem que mobilizou, constituindo uma sinfonia de vozes, em que ecoam não só jornalistas, mas também políticos, escritores, associações e partidos, leitores, colaboradores ocasionais que querem chamar a atenção para determinado problema ou trazer a público um poema, uma recolha etnográfica, etc. Em conjunto oferecem visões diversas das realidades e espelham vontades de intervenção. O espaço do jornal ou da revista era muito mais aberto ao acolhimento dessa pluralidade de vozes do que o mundo editorial ligado à produção livreira, e num certo sentido muito mais aberto do que alguma vez chegaram a ser os outros media.
Isto era acrescidamente sentido nas colónias, onde a população alfabetizada tendia a ser particularmente limitada, colocando sérios entraves ao desenvolvimento de editoras locais. Ao mesmo tempo que ajudou a construir discursos hegemónicos, a própria evolução tecnológica embaratecendo a impressão, permitiu que se tornasse um elemento activo na democratização da esfera pública e na criação de contrapoderes. A imprensa que sobreviveu às dificuldades de encontrar lugares de salvaguarda e preservação constitui por isso mesmo uma fonte imprescindível para recuperamos vozes apagadas nas políticas de construção de memória ou que acabaram simplesmente silenciadas, algumas particularmente significativas em termos individuais e colectivos. Isto é, a imprensa é um poderoso aliado da vontade democratizadora dos nossos olhares sobre a história. Estas e outras razões permitem sublinhar o seu papel secular na construção do mundo contemporâneo e nas articulações entre a liberdade e a igualdade na democracia moderna, bem como o vazio insubstituível criado pelo seu presente estertor.
Ora, o nosso grupo, ao propor aprofundar essas articulações com base no conceito de imprensa colonial que temos teorizado e do foco no antigo império português, visa esse esforço democratizador, pois sublinha a importância dos quadros coloniais e pós-coloniais na produção, modelação e circulação das ideias e das realidades conexas, bem como permite uma renovada atenção à diversidade de intervenientes, muitos deles apagados pelas narrativas dominantes. Consideramos importante a proposta de enfrentar e questionar, numa visão internacionalista e complexificada da história contemporânea, fronteiras nacionais, sociais, raciais ou ideológicas no olhar para a construção dessa história, contribuindo para promover novos entendimentos sobre os «nós» e os «outros». É uma abordagem que não visa apagar conflitos passados e presentes, nem memórias verdadeiramente traumáticas, mas reconhecê-los e apoiar o espírito dialógico tão necessário à democracia, nas nossas sociedades e nas relações internacionais.
Voltando à pergunta inicial: como contribuíram os media das então colónias para o processo de independência?
Apesar dos enormes constrangimentos à liberdade de expressão que eram particularmente sentidos nas colónias, como vários investigadores neste colóquio irão evidenciar, é possível descortinar na imprensa angolana, desde o século XIX, discursos que colocavam em causa as relações hierárquicas entre a metrópole e as colónias e as práticas dos agentes do poder. Frequentemente mostravam como essas relações e práticas contradiziam os princípios liberais e os discursos niveladores que acompanharam a construção da ideia de uma nação liberal pluricontinental. São questionamentos produzidos tanto por jornalistas, que dificilmente viviam da profissão, como por outros intervenientes.
A esse propósito, recordamos que as ideias de nação pluricontinental e de cidadania partilhada, que justificou a representação das colónias no parlamento nacional, não foi uma invenção de Salazar. Na verdade, tem origem no vintismo que abriu uma discussão que se prolongou pela I República e foi rejeitada pelo ditador com o Acto Colonial e a constitucionalização do Império Português. O que Salazar fez, quando percebeu o novo quadro do pós-guerra, foi recuperá-la dos escombros com fins puramente retóricos. A esta ideia vieram juntar-se, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, os debates e experiências, em Portugal e nas colónias, em torno dos modelos de descentralização administrativa ou de autonomia político-administrativa, que se tornaram fundamentais na Primeira República com significativo envolvimento das elites locais.
No que respeita a Angola, muitos investigadores, na sequência da obra de Mário Pinto de Andrade, encontram nas posições sobretudo dos chamados «filhos da terra» manifestações dum protonacionalismo. Mas temos de ter algum cuidado, pois importa esmiuçar a sua reivindicação de representarem os interesses locais e o entendimento do que constituíam esses interesses, no contexto colonial e da própria consideração da cidadania. É difícil fugir à questão racial e às divisórias civilizacionais que se teciam nessas discussões e ao perfil dos seus protagonistas. Em qualquer caso, parece inegável que contribuíram de formas diversas para entender Angola como um país com interesses próprios e com o direito de moldar o seu próprio destino mesmo dentro do quadro colonial.
Por outro lado, desde a Primeira República, até por influência do panafricanismo e de movimentos anticoloniais nacionalistas emergentes, designadamente na Índia que teve grande impacto internacional, a reivindicação de direitos de autogoverno e, mais radicalmente, do direito à discussão de horizontes de independência insinua-se crescentemente. Não é por acaso que assistimos a sucessivas vagas de repressão da imprensa mais crítica e radical publicada em Angola e em Portugal, só para nos focarmos nestes casos. Não podemos esquecer a forte ligação do republicanismo português ao projecto colonial. Mesmo considerando a importância do federalismo e das autonomias locais no seu ideário, a projecção de independências num futuro próximo ou sequer a discussão do direito à autodeterminação, salvo raras excepções, foi um assunto tabu nos meios políticos e intelectuais republicanos.
O Estado Novo surgiu para retroceder nesse processo, colocando um ponto final nessas e em outras discussões. Como sabemos, preocupou-se particularmente com a repressão da imprensa e em minar quaisquer projectos que não alinhassem com o discurso oficial. Todavia, assistimos à insinuação dessas discussões pela via cultural e, sobretudo a partir da Conferência de Bandung, à discussão aberta na imprensa clandestina e de exílio, e na imprensa estrangeira, como começa a ser estudado.
Para além de jornalistas, quem desempenhou um papel importante neste campo? Intelectuais, professores, escritores? Podem destacar alguns nomes?
Como dissemos, o número de jornalistas profissionais, em Portugal e mais ainda nas colónias, era relativamente restrito. Muitas das pessoas que escreviam nos jornais e revistas ou intervinham de outras formas exerciam outras profissões, eram intelectuais, políticos, escritores, artistas, estudantes, etc. Isto não impediu, como apontou já há alguns anos o nosso colega João Pedro Lourenço referindo-se ao caso angolano, que se construísse uma identidade e solidariedade de classe. Há alguns nomes que têm sido destacados, como os de Urbano de Castro, Alfredo Mântua, José Fontes Pereira, Maia Ferreira, António Joaquim de Miranda e Manuel Augusto dos Santos, entre a Monarquia Constitucional e a Primeira República. Durante o Estado Novo, como dissemos, a crítica política, mesmo disfarçada, tornou-se cada vez mais difícil, mas foram-se destacando projectos que procuravam afirmar alguma resistência. É disso exemplo, o jornal ABC, fundado na década de 50 e que está a ser estudado por João Manuel Rocha e por Noemi Alfieri, que contou com a colaboração de inúmeros opositores do regime, diversos com claras simpatias anticoloniais, e nacionalistas como os irmãos Alda e Ernesto Lara.
Existiram também colaborações com autores e resistentes portugueses e de outros países africanos?
Sim, sem dúvida. Como já sugerido, não faz sentido pensar a história da imprensa angolana, portuguesa ou de qualquer outra ex-colónia portuguesa, ou de muito dos seus escritores, confinando-nos ao que foi publicado em cada um desses países. Houve autores que circularam, literal ou virtualmente, por diversos espaços e pelos seus periódicos, uma circunstância a que as confluências estudantis, assim como as clandestinidades e os exílios conferiram nova dimensão. Houve projectos comuns em Lisboa, como A Voz d’África e a Tribuna d’África, o Colonial ou o Protesto indígena na Primeira República, ou o caso da revista Mensagem da Casa dos Estudantes do Império, no Estado Novo, para dar exemplos notórios. Ainda na Primeira República, por exemplo, o jornal A Batalha e o seu suplemento, constituíram um espaço de ligação de diversas lutas. Já no Estado Novo, sobretudo nos anos 60 com o eclodir das guerras anticoloniais, vemos emergir novos projectos comuns nos exílios, como o Bulletin d’Informations da CONCP, O Guerrilheiro, o Anti-Colonial, Liberdade ou o Portuguese and Colonial Bulletin, entre outros.
O colóquio junta investigadores de Estudos Literários, Ciências da Comunicação, História, Linguística, Sociologia, etc. Que vantagens tem esta perspectiva multidisciplinar? E que vantagens tem a colaboração de instituições de vários países na sua organização?
Esta vontade de abertura a diálogos nacionais e internacionais multidisciplinares e a abordagens transdisciplinares no quadro das ciências sociais e das humanidades, e a aposta na colaboração entre investigadores, universidades, projectos diversos, bibliotecas, arquivos e centros de documentação, faz parte do próprio projecto do Grupo de Estudos. Recordamos que o GIEIPC-IP reúne investigadores de diversas áreas de estudo que têm em comum o interesse pela imprensa colonial, enquanto fonte e objecto, e que liga nessa rede um crescente número de instituições. No que respeita os primeiros, sem querermos negar objectivos e metodologias próprios, consideramos esses diálogos muito enriquecedores para o trabalho de cada um, abrindo a novas perspectivas de análise e à consideração de cruzamentos metodológicos, De resto, os diálogos multidisciplinares fazem parte do nosso trabalho do dia-a-dia, não sendo por acaso que somos frequentemente convidadas a integrar júris multidisciplinares e a oferecer pareceres sobre o trabalho de investigadores de outras áreas. Consideramos não menos importante a ligação internacional entre os investigadores e instituições com vocação diversa. É uma forma de promovermos a internacionalidade como método perante um objecto que consideramos internacional, uma postura que tem uma forte componente ética e política, mas também prática no que respeita a gestão de recursos escassos. A contracorrente de lógicas de concorrência, trabalhamos sobre a base de valores e de interesses comuns, de forma solidária e a valorizando os contributos de cada um. É uma dinâmica instalada que se tem concretizado em iniciativas como a do presente colóquio e em projectos com os quais temos procurado obter fundos para novas trocas académicas e científicas, em condições que queremos ajudar a nivelar, para benefício de todos e das sociedades em que nos inserimos.
Entrevista colectiva realizada por escrito.
Texto: Isabel Araújo Branco.
Mais sobre o Colóquio «50 Anos de Dipanda. A imprensa africana e a democracia»: https://cham.fcsh.unl.pt/actividades-detalhe.php?p=5352
Mais informações sobre o Grupo Internacional de Estudos da Imprensa Periódica Colonial do Império Português (GIEIPC-IP): : https://www.gieipc-ip.org/