Modernos modos de melancolia. Literatos, Amantes e Religiosos
Proponho um breve itinerário que procede das primeiras observações das incidências da bílis negra sobre o comportamento e das correlativas hipóteses teóricas quanto ao continuum biopsíquico de base humoral - patente em diversos usos da metáfora médica no discurso filosófico, expressos na terminologia ética e política -, até à diferenciação de modos modernos de padecimento e excepcionalidade do melancólico. Pretendo salientar uma oscilação entre a observação eminentemente médica da melancolia e posições reflexivas, cujas incidências são mais pronunciadas no literato e no artista, mas cujo fundamento subjectivo, que se inscreve ao nível dos desafios e feitos individuais, desponta nos padecimentos do amor (e furor) heróico e na passagem das provações da acédia aos riscos da devoção moderna. Sustento que essa oscilação é indissociável da evolução das práticas da escrita de si, que passa de um registo eminentemente constativo, para um envolvimento auto-referencial, como prática de autodeterminação. Na tradição médica e cosmológica surgem as teorias da influência e determinação do melancólico, mas também a ideia de condições existenciais em que o carácter daquele está, excepcionalmente, à altura das situações, do exigido. Um dos traços que persiste dessa tradição, bem patente no Problema XXX.1, é o do apego, do não abandono de causas e compromissos que o sujeito toma como inestimáveis, sendo a sua perda (ou perigar) o instigador de desânimo, mas também de resistência e combatividade. Da variedade de horizontes teóricos para considerar o emergir de modos modernos de melancolia, irei privilegiar a História Conceptual de R. Koselleck, procedendo da ideia rectora de que os conceitos (e práticas) emergentes estão intimamente relacionados comos desafios postos à estrutura social vigente num determinado período, podendo detectar-se na semântica médica, literária e filosófica, elementos de consolidação, mas também de antecipação de novos problemas e possibilidades de resolução. Uma interpretação dos modos de melancolia a partir dos pressupostos do individualismo metodológico ou mesmo de uma ordenação a priori dos discursos seria impotente para captar a imposição de novas ordens de expectativas em que o sujeito se procura identificar e negociar a sua pertença. O pressuposto é o de que, na semântica histórica, a par dos modos de melancolia, surgem formas específicas de observação melancólica sensíveis aos desafios e expectativas da estrutura social. As observações dos “mecanismos” fisiológicos da melancolia, mormente as novas formas de adustão e combinatória humoral, não estão dissociadas dos modos de coexistência e pensamento, constituindo diferentes culturas de descontentes. Como tal, veremos como os novos modos de incidência da melancolia respondem a anseios de discursos nascentes, entre os quais o literário, o amoroso e o religioso. No literato e no artista, concernem primeiramente ao diagnóstico consistente de dificuldades laborais e insuficiências no modelo de patrocínio, mas estendem-se à procura de reconhecimento, com diversas expressões de ressentimento face à demissão de um papel nos destinos do mundo. No amante, está em causa o posicionamento face à evolução da codificação dos modos de amar, tendo em conta a idealização da figura do amado. No modo de vida religioso, ganham destaque as vicissitudes de uma vivência autêntica do mistério que se dispõe face a dogmas de interpretação religiosa e modos de fanatismo. Procuramos delinear, para cada um desses modos de melancolia, os seus “mecanismos”, vivência e expectativas específicos.
Cláudio Alexandre S. Carvalho é Professor Auxiliar Convidado no Departamento de Filosofia, Informação e Comunicação da Universidade de Coimbra, onde lecciona Filosofia da Ciência, e Investigador no Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, integrado no Grupo de Investigação “Aesthetics, Politics & Knowledge”. É doutorado em Filosofia - Ética e Política - pela Universidade de Coimbra (2012), com uma tese sobre os conceitos de parentesco e género na transição para a sociedade moderna, centrada em Hegel e nas interpretações contemporâneas de Lacan, Butler e Luhmann. Foi visiting scholar na Humboldt-Universität zu Berlin e Professor Auxiliar Convidado na Universidade da Beira Interior (2016-2017), onde leccionou ética e teoria política a cursos de saúde. Desde a conclusão do seu doutoramento, C. Carvalho tem centrado a sua investigação nos fundamentos filosóficos da terapia, utilizando a Teoria dos Sistemas como enquadramento. Desenvolveu o projecto de pós-doutoramento "Melancolia e a Constituição do Meio Terapêutico" (2017-2023), tendo publicado trabalhos sobre a co-evolução dos conceitos de melancolia e de meio terapêutico, com estudos sobre Aristóteles, Filosofia Antiga, Galeno, Acedia, Dante, Ficino, Amor Erótico, Commentarii Conimbricenses, Burton, Mandeville, Kant, Maine de Biran, Freud, Tellenbach, e a interacção entre trauma e melancolia. C. Carvalho organizou vários eventos internacionais, abordando temas como a Teoria da Família e do Género, a Terapia, a Melancolia, a Estética, o Pensamento Judaico, os Estudos da Memória, o Trauma, a Teoria do Conflito e a Ética da Inteligência Artificial. O seu trabalho explora também as dimensões estética, ética e política da terapia e das culturas de auto-ajuda. Actualmente, está a publicar o seu último livro, Robert Burton on the Melancholic Plague: A Philosophical Reflection on the Social, Political, and Economic Bases of Therapy.
16h30 - Debate
Comentário por José Morgado Pereira.
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