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Entrevista11.11.2024
Escândalos e crimes na imprensa: os efeitos das «fake news» e do sensacionalismo na sociedade.
Entrevista a Isabel Lustosa.

 

Conversámos com Isabel Lustosa a propósito do Simpósio «Polêmicas, escândalos e crimes: o lugar da comoção na imprensa impressa periódica», que terá lugar de 26 a 28 de Novembro na Biblioteca Nacional e online. A organizadora do evento fala sobre as utilizações do sensacionalismo, as «fake news» antigas e contemporâneas e os efeitos destas práticas na sociedade.

 

O sensacionalismo sempre foi um instrumento utilizado pelas empresas e/ou meios de comunicação para aumentar a sua circulação e vendas?

É preciso dividir a pergunta em duas. A primeira parte diz respeito ao lugar do sensacionalismo na imprensa e a outra diz respeito à história da própria imprensa como empreendimento comercial voltado para a obtenção de lucro. A precariedade dos meios de impressão nos primórdios da publicação de jornais e revistas periódicas na segunda metade do século XVIII fazia com que lançar uma publicação desse gênero fosse negócio muito pouco lucrativo. O objetivo central de quem se metia nesse tipo de empreitada raramente era o lucro obtido com a venda, mas a divulgação de ideias, produtos e notícias. Já o sensacionalismo como apelo ao público leitor esteve presente desde o começo, se consideramos o conceito de forma mais abrangente. Afinal, os impressos que incendiaram a França durante a Revolução de 1789, com ataques violentos a Maria Antonieta, Luís XVI, os padres e a aristocracia atingiam o público justamente por seu caráter sensacionalista. No entanto, é apenas com a publicação dos chamados «fait divers» sob a forma de folhetim, especialmente a partir da década de 1830, que os editores descobrem como o público tem seu interesse aumentado pela leitura dos jornais que investem nessa linha editorial. Mas vai ser o progresso tecnológico, o aumento da quantidade de jornais que uma prensa seria capaz de imprimir e o surgimento de meios de transporte avançados como o trem e os navios a vapor que foi possível ampliar a tiragem e o alcance das publicações periódicas e sentir o quanto a notícia sensacional, o crime escabroso, o escândalo envolvendo personalidades públicas e as grandes tragédias contribuem para o aumento das tiragens. Este fenômeno teve considerável evolução a partir da década de 1860.

 

Quais os antepassados das «fake news», tão comentadas hoje em dia?

«Fake news» sempre existiram. Seria exaustivo apresentar aqui um levantamento histórico da quantidade de notícias falsas de impacto propagadas pela imprensa desde, pelo menos a campanha pela Independência dos Estados Unidos quando o próprio Benjamin Franklin, considerado o patriarca da imprensa norte- americana andou espalhando notícias falsas contra a Inglaterra para estimular o público leitor a aderir à sua causa. A manipulação da notícia é um fenômeno jornalístico que começa pelo uso instrumental da retórica – a forma como uma história é contada – numa gradação que vai até a invenção de fatos não ocorridos. A novidade é que os meios de comunicação se tornaram tão avançados que qualquer pessoa – se tiver competência para tanto - pode produzir uma notícia falsa e, por meio das redes sociais, provocar uma conturbação social envolvendo centenas de pessoas. A produção da notícia deixou de ser exclusividade das empresas jornalísticas e o mundo ainda está se adaptando a essa nova realidade. Realidade que se tornou ainda mais complexa com a evolução da «inteligência artificial» que pode dar um caráter de perfeita verossimilhança a uma «fake new» com o uso de imagens, sons e outros recursos.

 

Em geral, a exploração mediática do crime visa apenas a informação do público ou tem outros objectivos?

Naturalmente que notícias de crimes são um dos serviços de utilidade pública que a imprensa presta, assim como notícias esportivas, de acidentes, de epidemias, de problemas urbanos, informações sobre acontecimentos políticos e econômicos, etc. Mas a forma como notícia criminal é construída, o destaque dado à sua posição no jornal, o apelo da chamada em manchete de primeira página, por exemplo e o reforço dessa manchete com uma imagem expressiva revelam a intenção de capturar a atenção do público leitor acima do que seria necessário para apenas informar sobre o crime dentro daquelas balizas das regras jornalísticas: quem, o quê, como, quando, onde e porquê. \

 

Parafraseando o título do simpósio, podemos fazer um paralelo entre as «polémicas, escândalos e crimes» na imprensa do século XIX e na imprensa do século XXI?

Polêmicas, escândalos e crimes continuam a acontecer porque têm sua origem em manifestações da natureza humana. As questões identitárias hoje, por exemplo, são um espaço fértil para polêmicas que ultrapassam o campus universitário e tomam conta da mídia. Na década passada, os escândalos de corrupção envolvendo políticos foram construídos e alimentados pela grande imprensa provocando a corrosão de carreiras de homens públicos importantes. E os crimes, especialmente os crimes hediondos, serão sempre motivo de interesse mesmo por parte do leitor aparentemente mais desinteressado. Como disse antes, o que mudou foi a forma de difusão da notícia. O efeito agora é instantâneo. O fato está acontecendo diante dos seus olhos fixados na tela do celular e sua reação como a de todos os que receberem aquela mensagem será imediata. Seja ela qual for.

 

Qual a importância da realização deste evento académico?

Esse simpósio reúne grandes especialistas de várias nacionalidades que enfrentam esses temas de uma perspectiva multidisciplinar. É também uma homenagem a Dominique Kalifa (1957-2020), historiador francês, autoridade nos estudos voltados para esses temas e que tem entre os participantes vários colegas que com ele conviveram e realizaram trabalhos em parceria. Liderado por um elenco de conferencistas que são nomes consagrados internacionalmente, como Fernando Catroga, Jean-Yves Mollier e Marie-Eve Therenty, o simpósio apresenta estudos com abordagens nas áreas de história, literatura, comunicação e ciências sociais. Trata-se de uma proposta de reflexão sobre qual foi o papel da imprensa impressa nos séculos XIX e XX para a constituição de um campo comunicacional que, mesmo quando não tinha como objetivo inicial a emoção, ao provocá-la revolucionou o mercado da notícia dando novos rumos para a empresa jornalística. Texto: Isabel Araújo Branco. Foto: Cícero Rodrigues.

 

Texto: Isabel Araújo Branco.
Foto: Cícero Rodrigues.

 

Simpósio «Polêmicas, escândalos e crimes: o lugar da comoção na imprensa impressa periódica» (web)