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Entrevista28.11.2024
COIMI: um congresso itinerante que cruza saberes e experiências indígenas… e sobre indígenas
Entrevista a Juciene Ricarte Apolinário

 

Diálogo, aprendizagem e conhecimento de várias comunidades, épocas e campos de saber: estas são as ideias centrais do Congresso Internacional Mundos Indígenas (COIMI), que está já na sua quinta edição. Depois de semanas intensas na Polónia, França e Espanha, os participantes deste congresso itinerante estão a chegar a Lisboa, para a edição portuguesa, que terá lugar a 2 e 3 de Dezembro. Em entrevista, Juciene Ricarte Apolinário, uma das organizadoras, conversa sobre o cruzamento de conhecimentos empíricos e académicos, a participação das mulheres e as vantagens deste original modelo de congresso.

 

Parte dos participantes do Congresso Internacional Mundos Indígenas (COIMI) são indígenas com formação académica, ou seja, cruzam em si o conhecimento teórico e metodológico das ciências sociais e das humanidades com os saberes das culturas em que se inserem. Qual a importância deste diálogo de conhecimentos?

A presença dos povos indígenas nos ambientes universitários no Brasil e no exterior, como aqui na Universidade Nova de Lisboa, gera reflexões ante a concepção de diálogo entre ciências indígena e ocidental e as implicações em relação à divulgação da ciência e do saber indígena desde uma visão decolonizadora. Nesse sentido, promove-se a aprendizagens no diálogo entre os conhecimentos indígenas e conhecimento científico ocidental, através de travessias de fronteiras interétnicas e epistêmicas, sendo capaz de reconhecer a pluralidade de pensares no mundo diante da diversidade étnica humana.
Como disse o cientista Donato Nobre, depois de muitas descobertas e pesquisas, «a ciência confirma, palavra a palavra, a sabedoria dos povos indígenas», grande parte repassada oralmente e na conexão com a natureza, um fator singular em nossas culturas indígenas. E é justamente a ligação com a natureza um dos pontos mais importantes que os conhecimentos dos povos originários vem ensinando ao mundo no passado e presente. Uma das epistêmes indígenas é que, quando você tem uma relação de respeitabilidade e espiritualidade com a natureza, a percepção é de reciprocidade e não de noção de posse, ou seja, é relacional e não no sentido de «recursos» como diz Ailton Krenak. É uma constatação de que a vida não pulsa só em cada pessoa, mas também nas árvores, nos rios, nos ventos, no céu noturno, na lua, nas estrelas, no sol e notadamente nas plantas. Algo que você reconhece como sagrado. A partir dessa forma relacional os povos indígenas souberam construir conhecimentos, por exemplo, para a cura do corpo e da alma, também utilizando práticas empíricas e utilitárias milenares. Nos dias atuais, o mundo científico e dito acadêmico vem percebendo que estes saberes se tornaram não só importante para a valorização dos povos indígenas, mas essencial para a sobrevivência da humanidade na Terra.

 

As mulheres têm um papel particular neste congresso?

A presença das mulheres indígenas e não indígenas em todas as atividades e discussões do COIMI é destacável. Revela o quanto buscamos valorizar a interculturalidade nos espaços científicos e o respeito as diferentes temáticas sobre os povos originários (a saber, agências históricas, território, cosmologias, questões ambientais) e é um grande diferencial. Percebe-se que o COIMI também inspira outras mulheres pesquisadoras indígenas e não indígenas a seguirem na luta pelas questões educativas, científicas, ambientais sobre a história, memória e demandas indígenas.

 

Podes destacar alguns temas desta edição do COIMI?

Entre as principais temáticas do V COIMI Europa destacam-se agências indígenas no passado e presente, questões ambientais, territórios, águas e povos indígenas, educação escolar e povos indígenas, saberes indígenas e práticas culturais no passado e presente.

 

Uma das originalidades do COIMI é a sua realização em várias universidades europeias, no mesmo ano, como uma espécie de turnê. Quais as vantagens deste modelo de contacto com diferentes públicos e académicos?

Antes de tudo é importante evidenciar que o COIMI é um evento bianual e foi criado no âmbito do Seminário Permanente Mundos Indígenas - América no CHAM-Centro de Humanidades, na Universidade Nova de Lisboa, em Abril de 2015. O grupo de investigação do CHAM criou o COIMI, objetivando construir uma maior rede colaborativa em âmbitos nacional e internacional para as discussões interdisciplinares sobre a história dos povos indígenas da América. Para tanto, pretende-se ampliar diálogos entre investigadores indígenas e não indígenas da temática em destaque para que se possam construir possibilidades de novos caminhos teórico-metodológicos sobre a pesquisa acerca dos povos originários do século XVI até ao tempo presente e divulgar as ações em prol da memória, patrimônio cultural, ambiental, história, educação e direitos indígenas de uma forma geral em âmbito internacional.
O II Congresso Internacional Mundos Indígenas - diálogos sobre história, direito e educação séculos XVI aos dias atuais foi executado em novembro de 2017 na Europa em dois países Espanha (Universidad Pablo Olavide) e Lisboa (Universidade Nova de Lisboa) com resultados extremamente profícuos e assertivos. Em 2018, na América, ocorreu no Brasil, em Paraíba (Universidade Federal de Campina), como apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia, CNPq e da Universidade Estadual da Paraíba. Em 2019 o III COIMI retornou à Europa e dessa vez teve o apoio da Universidade da Sorbonne, Paris 3, Paris, França. Portanto, a partir desse ano nosso evento passou a ter três sedes e se tornou absolutamente assertivo e colaborativo com a participação de pesquisadores indígenas e não indígenas de diferentes povos e nacionalidades em três diferentes países europeus. E nesse ano de 2024 o V COIMI está sendo executado, ousadamente, em quatro países: Polônia, França, Espanha e Portugal. Cada país com seu tema norteador a saber consecutivamente: ciclos de água; ambientes, usos e representações; patrimônio cultural, arte e literatura; agências, movimentos sociais e lideranças na História de América; e fontes e histórias interétnicas nos espaços coloniais junto aos povos originários no passado e seus reflexos no presente. Importante salientar que o grupo Seminário Permanente mundos indígenas criou no âmbito do CHAM, um congresso científico itinerante, interétnico, intercultural, interdisciplinar e interepistêmico único não só na Europa mas no mundo, devido ao seu modelo dinâmico e ousado ao ser executado em mais de um país de forma consecutiva em dias alternados.

 

Esta será a quinta edição do congresso, ao longo de nove anos. Que balanço podemos fazer destas edições?

Nos últimos nove anos, o COIMI Europa e América vem obtendo contribuições de diferentes pesquisadores de universidades na América e Europa oriundas da antropologia, arqueologia, história, ciências ambientais, sociologia, linguística, educação e direito, proporcionando avanços promissores no tocante à visibilidade do protagonismo ameríndio através das suas variadas formas de agenciamentos diante das pressões e violações dos seus direitos ao longo dos mais de 500 anos. O COIMI, em seus espaços de diálogos, vem revelando que em toda a América, a partir dos anos 1990, a história e questões indígenas de uma forma geral vem se solidificando no campo da pesquisa nas ciências sociais e humanas através de um diálogo epistemológico interdisciplinar contínuo. No campo específico da história, percebe-se as apresentações de resultados de investigações históricas com o uso de diferentes fontes, assim como, de variadas temáticas, temporalidades, epistemologias e conceitos. Como exemplo: em nossas pesquisas históricas sobre povos indígenas, não queremos utilizar apenas o conceito de «resistência» e sim de «agência» como evidenciava nosso querido e inesquecível historiador John Manuel Monteiro. Esse último refere-se à capacidade de um indivíduo processar a experiência social e escolher como enfrentar as violações e novas relações interétnicas, mesmo sob coerção especialmente no mundo das fronteiras interétnicas nos primeiros contatos entre colonizadores e povos indígenas no período colonial, entre os séculos XVI e XIX. Ou melhor, os povos indígenas criaram o tempo todo culturas e práticas políticas diante dos colonizadores, mesmo em se tratando de sociedades sem Estados, como diz o antropólogo Pierre Clastres. A noção de agência entre os povos indígenas diante do colonizador é um ponto central para entender as travessias de fronteiras, as lutas contra toda a forma de violações de direitos no passado e presente, não mais o conceito reducionista de «resistência».
No V COIMI de 2024 objetivamos trazer discussões sobre pesquisas que vem se desenvolvendo na Europa e na América e que constroem reflexões sobre as agências, violações, conquistas e recrudescimento das lutas dos povos indígenas na América entre os séculos XVI aos dias atuais. Revisitamos a temática indígena, não com os olhos no passado pelo passado, mas diante das demandas do tempo presente que passou a ser também reivindicações dos próprios movimentos indígenas das últimas décadas, ou seja, a história, memória, educação, meio ambiente, reconhecimento das etnicidades, territórios, patrimônio e natureza enquanto direitos históricos e inalienáveis.

 

Texto: Isabel Araújo Branco.
 

Congresso Internacional Mundos Indígenas, Europa