
A Universidade dos Açores acolherá o IX Colóquio «A Casa Senhorial em Portugal e no Brasil. Anatomia dos interiores. Centros e periferias, encruzilhadas e circulações», entre 7 e 11 de Maio. A propósito do evento, Isabel Soares de Albergaria conta como as dinâmicas de centro e periferias influíram sobre a arquitetura e o papel social das casas senhoriais, a distância da metrópole proporcionou uma maior liberdade e criatividade às regiões insulares e ao Brasil e a circulação de pessoas e técnicas entre regiões mais «periféricas», sem a intermediação de Portugal continental.
O colóquio tem como ponto de partida as interações entre centros e periferias, analisando a forma como essas dinâmicas influenciaram a arquitetura e o papel social das casas senhoriais. Não queremos antecipar as comunicações que serão apresentadas no evento, mas pode dar-nos um exemplo desse impacto?
A casa senhorial está relacionada com as estratégias das elites para reforçar o seu estatuto e poder, funcionando como palco da vida familiar, regulada por relações verticais e horizontais, e associada a funções de representação social e até política manifestadas pela codificação social e simbólica. Se este quadro genérico é válido para as diferentes elites, de corte, de província, insulares e coloniais, as diferenças e gradações existentes no seio desse corpo heterógeno estão plasmadas na configuração, organização e aparato das casas senhoriais, ou casas nobres — conforme a designação mais comum adotada então. Nesse sentido, as relações permanentes ou mais esporádicas entre centros e periferias revelam o poder de emulação dos modelos consagrados e a vontade de adoção das novidades do gosto, ao mesmo tempo que deixam transparecer as tradições locais e os aspetos vernaculares de forma muito expressiva. Um exemplo da mestiçagem pode ser encontrado nas casas de sobrado cafeeiras do vale do Paraíba do Sul, em que longos edifícios marcados pela métrica regular dos vãos de sabor muito português se conjugam com varandas alpendradas de madeira e pátios interiores que segregam os porões do sobrado, de uma forma muito distinta das quintas e casas de campo portuguesas. O mesmo se pode dizer no caso goês e, em menor grau, mas com as suas singularidades próprias, da casa senhorial açoriana.
A distância geográfica do centro do poder verificada nas regiões insulares e no Brasil permite uma maior liberdade e criatividade ou esse aspeto não é relevante?
Sem dúvida. A distância geográfica, a disponibilidade dos materiais endógenos, os sistemas tecno-agrários desenvolvidos em cada região e as particularidades do clima introduzem adaptações significativas nas tipologias dos edifícios que se constroem nos vários pontos do antigo império português. Por outro lado, ainda, a carência de normativos reguladores das obras e a ausência de mestres de reconhecido mérito associados ao serviço régio, implica que nas ilhas açorianas, por exemplo, a casa nobre dispense a figura do arquiteto e até do projeto formal de obra. Como quase sempre acontece em contextos muito vernaculares, a margem de criatividade dos mestres de obras, canteiros e carpinteiros é por vezes assinalável estando associada às singularidades e peculiaridades da arquitetura senhorial.
Além da comunicação dos vários territórios do império com a metrópole, existiam também influências de ideias, pessoas e técnicas entre regiões mais «periféricas» sem a intermediação de Portugal continental?
A circulação entre as duas margens do Atlântico sempre foi muito intensa e, ao contrário do que se possa pensar, a emigração de açorianos para o Brasil está longe de ser circunscrita ao povoamento do sul (Santa Catarina e Rio Grande do Sul) no final do século XVIII. Desde o século XVI que se registam emigrantes para terras brasileiras, particularmente para São Salvador da Baía, Rio de Janeiro e também para São Paulo, Minas e até para o Nordeste. A título de exemplo um dos pioneiros da mineração do ouro, o famoso bandeirante Manuel da Borba Gato, era filho de um casal proveniente da Ilha Terceira estabelecido na então capitania de São Vicente na década de 1630 e casa com Maria Leite, também ela descendente de açorianos. Três das suas filhas casaram com micaelenses que regressam aos Açores trazendo muito ouro do Brasil, declarado na casa dos contos, e em São Miguel fundaram vínculos e casas nobres. Um outro dado curioso é a frequência com que se encontram nas fazendas do café do vale do Paraíba os «filtros de água» que eram produzidos na ilha Terceira e exportados para o Rio. Pode afirmar-se com segurança que existiram trocas de produtos, técnicas e circulação de pessoas e ideias que não passavam pela metrópole, pese embora as relações com os territórios asiáticos sempre terem sido mais controladas pela Coroa.
No âmbito do colóquio, estão previstas visitas de estudo nos concelhos de Ponta Delgada, Vila Franca do Campo, Povoação e Ribeira Grande. Que espaços serão visitados? E que impacto na comunidade açoriana se pretende obter?
Sim. O colóquio constitui uma oportunidade para apresentar, trocar e debater casos de estudo, perspetivas e novas abordagens ao tema da casa senhorial, mas tem também uma componente que poderíamos chamar de visitas de estudo, com visitas planeadas a casas senhoriais que se encontram espalhadas por vários pontos da ilha de São Miguel. Algumas dessas casas estão ainda em mãos privadas, não estado por isso acessíveis ao público em geral, como acontece com a Casa dos Pinheiros, a casa Vieira/Fonte Bela, o chalé Ernesto do Canto no Parque Beatriz do Canto, ou a herdade do Lameiro, tornando-se uma oportunidade única para os participantes do colóquio. Outras foram adaptadas a novas funções como o Museu de Vila Franca, o Palácio de Santa Catarina, sede do Comando Operacional dos Açores, o Palácio Fonte Bela que é hoje a Escola Secundária Antero de Quental ou o Palácio de Santana, sede da Presidência do Governo Regional dos Açores. Acima de tudo, pretende-se chamar a atenção para o valioso património histórico e arquitetónico que São Miguel e os Açores possuem e que não tem sido devidamente reconhecido e estimado.
Qual a importância da realização deste evento académico, que, aliás, dá seguimento a um conjunto de colóquios sobre a área no âmbito do projeto «Casa Senhorial em Portugal e no Brasil»?
O projeto da Casa Senhorial começou por ser um colóquio luso-brasileiro iniciado em 2010 envolvendo várias edições e entidades parceiras, tendo como principal impulsionador desde os seus fundamentos o Doutor Hélder Carita, investigador do IHA-FCSH-NOVA. A partir de 2018, o âmbito temático, geográfico e cronológico alarga-se passado a designar-se «A Casa Senhorial em Portugal, Brasil e Goa», continuando sedeado no Instituto de História da Arte da FCSH-NOVA e estabelecendo uma parceria com a Fundação Casa de Rui Barbosa do Rio de Janeiro. Em maio de 2024 participei como conferencista no VIII Colóquio Internacional da Casa Senhorial que teve lugar em Vassouras (Brasil) a convite da Fundação Casa de Rui Barbosa. Nesse contexto foi lançada a ideia de realizar-se o próximo colóquio nos Açores, repto que atendi com entusiasmo e que foi igualmente bem acolhido pela Comissão Coordenadora Científica do CHAM-Açores, principal entidade financiadora desta edição. O CHAM-Açores, em parceria com IHA, a Fundação Casa de Rui Barbosa e o Museu Municipal de Vila Franca leva a cabo a organização do IX Colóquio Internacional da Casa Senhorial em Portugal, Brasil e Goa, contando com o Alto Patrocínio do Governo Regional dos Açores, o apoio da Câmara Municipal de Ponta Delgada, da Fundação do Jardim José do Canto e ainda a colaboração de várias entidades privadas e públicas. Teremos ainda o gosto da participação de uma representação da Associação das Casas Históricas. No plano científico é significativo que se possa dar continuidade a este projeto que investiga o tema da Casa Senhorial nos planos da Arquitetura, dos Programas Distributivos, da Decoração aplicada e Equipamento móvel, alargando agora às «circulações e cruzamentos» entre territórios distintos do antigo império português e a metrópole, sem esquecer o Arquipélago açoriano — um nó de ligação entre pontos distintos e distantes. Apraz-nos registar que teremos uma forte participação de investigadores brasileiros e portugueses, bem como duas comunicações dedicadas a temas goeses e seis relacionados com os Açores.
Texto: Isabel Araújo Branco.
Página do colóquio: https://cham.fcsh.unl.pt/actividades-detalhe.php?p=5274