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Entrevista05.08.2025
Propaganda Fide: quando a negociação substituiu o antagonismo
Entrevista a Miguel Rodrigues Lourenço

 

Miguel Rodrigues Lourenço conversou sobre a Congregação Propaganda Fide a propósito do recente Congresso «Iberian Patronages and the Congregation of Propaganda Fide: Antagonism, Alignment and Cooperation (17th – 20th centuries)», que teve lugar na Universidade de Coimbra, no fim de Janeiro, numa co-organização do CHAM. O historiador falou sobre o desenvolvimento das investigações sobre o tema, as tensões entre os Padroados ibéricos e as estratégias da congregação, os agentes missionários e políticos da Coroa e da República portuguesas, as diferenças entre as acções de Portugal e de Espanha e a resistência em várias partes do mundo.

Podes destacar alguns resultados de novas investigações apresentadas no o Congresso «Iberian Patronages and the Congregation of Propaganda Fide: Antagonism, Alignment and Cooperation (17th – 20th centuries)»?

 

O nosso Congresso, conforme expresso pelo subtítulo, procurou valorizar três dimensões, desde o antagonismo ao alinhamento e à cooperação. Se o antagonismo é, de longe, a dimensão mais explorada nas relações entre os padrados régios ibéricos e a Congregação de Propaganda Fide, o evento permitiu explorar cenários em que se verificaram formas de coexistência que passaram pela necessidade de encontrar soluções para o governo espiritual dos fregueses afectos a uma ou outra obediência eclesial. Os estudos de caso, à medida que se aumenta o foco de análise, mostram realidades em que a contemporização se substituiu ao antagonismo como forma de o quotidiano entre comunidades católicas locais continuar a existir. Do mesmo modo, os estudos de caso mostram atitudes, por um lado, ambivalentes por parte de indivíduos que esperaríamos estarem obrigados a defender os direitos de padroado, mas que manifestaram o seu interesse por uma maior associação à Propaganda Fide ou que, por outro lado, mudaram de campo autenticamente. Outro dos objectivos deste colóquio foi o de, não ultrapassar, mas procurar nivelar os cenários históricos da relação padroado(s)-Propaganda. Tradicionalmente, a Ásia, nas suas diferentes vertentes, domina os estudos sobre esta relação, sobretudo, em Portugal. O predomínio da Ásia não deixou de se fazer sentir, mas foi possível manter um painel de discussão específico sobre outros contextos históricos, nomeadamente, africanos. Há ainda um largo caminho a percorrer na temática, que vinha registando um menor interesse no nosso país até anos recentes.

 

Os trabalhos do congresso abrangeram quatro séculos. De forma geral, quais as maiores mudanças que se verificam neste longo período na «Propaganda Fide»?

 

Uma das nossas apostas, que creio que resultou, foi procurar superar a tendência para separar as divisões tradicionais da História entre um período Moderno e um Contemporâneo. As tensões seculares entre os Padroados Ibéricos (sobretudo no caso português) e as estratégias implementadas pela Congregação de Propaganda Fide prestam- se bem a este objectivo. Naturalmente, a diversidade temporal implica, também, uma diversidade dos agentes missionários e políticos da Coroa ou da República portuguesas no modo de lidar com a presença de missionários vinculados a congregações não dependentes do padroado português. Com as diferentes vicissitudes da história portuguesa (Liberalismo, República, Estado Novo), passou-se de uma terminante exclusão a uma partilha controlada do campo missionário, sobretudo à medida que a Propaganda Fide assumia uma liderança inquestionável no esforço católico de missionação. A defesa do direito português de padroado manteve-se, ao invés, uma constante à medida que se transitou de um paradigma a outro. Com o passar dos anos, foi necessário um esforço de contemporização e de convivência no terreno entre si – mas também com outros missionários, nomeadamente do campo do protestantismo (portanto, uma concorrência de âmbito confessional) –, ao mesmo tempo que se definia que comunidades ou territórios estariam afectas a que missionários, procurando o Estado português sempre defender a sua soberania sobre esses espaços e comunidades.

 

Há diferenças significativas em relação à acção de Portugal e de Espanha?

 

No caso espanhol, no imediato o nível de tensão é menor, pois um dos espaços de investimento da Propaganda Fide foi, precisamente, o contexto asiático, promovendo uma leitura dos direitos portugueses de padroado baseada no critério do domínio efectivo. A circunstância de, a partir da década de 1620, quando a Congregação foi criada, o Estado da Índia se encontrar em acentuado declínio militar e naval, facilitou uma narrativa que acentuava a incapacidade de a Coroa portuguesa apoiar tantas iniciativas missionárias e assegurar o crescimento sustentado das mesmas. O ataque aos princípios basilares do direito de padroado obrigou, em Portugal, a uma postura de antagonismo sem espaço para iniciativas de convergência, mesmo quando procuradas por alguns dos agentes do padroado. Por exemplo, se nos vice-reinados americanos da monarquia espanhola encontramos iniciativas de fundação de colégios da Propaganda Fide, nos territórios governados pela Coroa de Portugal, tudo se processa de forma muito mais tensa.

 

E o que podemos dizer sobre a resistência à «Propaganda Fide» em diferentes pontos do globo?

 

A resistência é, certamente, um aspecto incontornável da história das missões apoiadas pela Propaganda Fide, pois a sua presença em diferentes espaços significou a introdução de uma nova autoridade eclesial que, forçosamente, implicava o recuo de outras jurisdições eclesiásticas. No caso português, estas novas realidades – a nomeação de vigários apostólicos com autoridade episcopal – pressupunha que a autoridade dos bispos afectos ao padroado português deixariam de ter jurisdição sobre missões anteriormente promovidas por missionários suportados pelo padroado, como a Cochinchina, o Tonquim (hoje ambos parte do Vietname) ou o Sião (Tailândia). Para alguns actores locais envolvidos no esforço de cristianização, a presença destes novos agentes eclesiásticos – os vigários apostólicos e os missionários que os acompanhavam – significava, ainda, a possibilidade de aceder a itinerários eclesiásticos que antes lhes estavam vedados ou fortemente limitados. A resistência, portanto, tem vários matizes e mesmo entre os portugueses não se pode falar que formassem um bloco linearmente anti-Propaganda. Sobretudo, ao início, antes de os projectos da Propaganda terem gerado um diferendo diplomático entre a Coroa portuguesa e a Santa Sé a respeito dos direitos portugueses de padroado, diferentes agentes eclesiásticos portugueses viram na Propaganda uma solução de recurso para superar as carências da Coroa no apoio aos esforços de cristianização.

 

Texto: Isabel Araújo Branco.

 

Página do colóquio: https://cham.fcsh.unl.pt/actividades-detalhe.php?p=5348