
Diversidade, complexidade, riqueza e sororidade: é com estas palavras que Margarida Rendeiro caracteriza as oito escritoras que são entrevistadas no documentário Guardadoras de Histórias, Guardiãs da Palavra, integrado no projecto «WomenLit». No filme, vemos e ouvimos Eliana N’Zualo, Ellen Lima Wassu, Énia Wa Ka Lipanga, Gisela Casimiro, Fátima Bettencourt, Fernanda Vieira, Odete e Paula Tavares, escritoras de diferentes gerações de países do Atlântico afro-luso-brasileiro, que falam sobre criação, memórias, periferias e resistências literárias e culturais nas suas obras. O processo de edição do documentário está já concluído, como conta a investigadora principal do projecto.
Uma das actividades do projecto «WomenLit» é a produção de um documentário que conta com a participação de escritoras do espaço luso-afro-brasileiro no século XXI e que se intitula Guardadoras de Histórias, Guardiãs da Palavra. Sabemos que o filme está já pronto. De forma resumida, que conclusões podemos tirar das entrevistas realizadas? Que pontos em comum existem entre as autoras de países tão distantes entre si? E como isso se reflete nos seus textos?
A produção do documentário resultou da necessidade de acreditarmos que é necessário gerar um espaço de escuta. Escutar estas mulheres é muito importante; e não apenas estas mulheres, mas todas as outras que não estão no documentário. O documentário é uma amostra desta diversidade. E poderia ser refeito vezes sem conta, mantendo o mesmo nível de diversidade e complexidade. Essa foi talvez a maior dificuldade que se ultrapassa sabendo que as escritoras que ouvimos e vemos constituem um primeiro passo para continuarmos a ouvir e ver outras, mesmo que fora do formato documentário. E esta é talvez também uma primeira conclusão. Não existem conclusões que nos permitam chegar a uma frase simples qualquer que as defina, para além de serem todas elas escritoras – e muitas também artistas – e mulheres. Mas cada uma o é de forma singular e única. Acredito que poderíamos também chegar a uma conclusão semelhante se tivesse sido um documentário sobre escritores. A diferença é que está internalizada e normalizada uma visão ocidental que nos levaria a ler esse documentário como um filme sobre a pessoa escritora e veríamos como todos eles são diferentes e, ao mesmo tempo, identificaríamos pontos de contacto entre eles. E, numa versão mais optimista, até veríamos nesse documentário sobre escritores uma ou duas escritoras. Afinal, é o que vemos em obras que celebram os vários cânones literários – uma, duas ou três escritoras e uma longa lista de homens escritores. Neste documentário, a conclusão não é diferente e, acrescento, a diversidade é igualmente reforçada pela riqueza subjectiva. Outras conclusões que se podem extrair de um documentário que se centra em mulheres escritoras – e apesar da distância geográfica, que implicou missões da equipa ao Brasil, Cabo Verde e Moçambique – no Atlântico luso-afro-brasileiro incluem que a colonialidade do pensamento ocidental atravessa não só as histórias destes territórios, mas também as suas próprias histórias e percursos. E isto reflecte-se nos seus textos. E não nos podemos esquecer de um aspecto muito importante: elas lêem-se umas às outras e continuam a ler-se, independentemente da geografia e das gerações. Durante a montagem do documentário, a Raquel [Freire, a realizadora] e eu comentámos várias vezes que estivessem todas estas mulheres sentadas à volta de uma mesa, a conversa não teria sido muito diferente. Todas vão desdobrando conceitos, explorando-os, desconstruindo e acrescentando camadas de complexidade em contínuo. E este é um facto muito comovente também.
Como foi trabalhar tão de perto com oito escritoras e com a realizadora (e também escritora) Raquel Freire?
Foi extraordinário. Em primeiro lugar, destaco a generosidade de todas as escritoras que aceitaram participar e fizeram-no com toda a alma, sem se retraírem. Foi um trabalho assente na confiança e no profundo respeito. Aprendi imenso com cada uma delas e sinto que faço um trabalho de contínua redescoberta ao lê-las também. E continuarei a lê-las e a escrever sobre elas também, tal como acredito que a restante equipa também o faz e fará. Como uma das escritoras afirma, todos deveríamos despender um pouco do nosso tempo para lermos os vários textos de mulheres tão diferentes e, no entanto, que nos acrescentam tanta humanidade e essa humanidade é necessariamente complexa. Trabalhar com a Raquel Freire foi um privilégio que ainda hoje me deixa sem palavras. Desde o início, sabia que seria a realizadora que mais sentido fazia envolver neste projecto; os seus filmes sobre mulheres, uma visão extremamente comprometida e profundamente ética. Aprendi e aprendemos muito com ela. É preciso que se diga que sou – e somos – investigadores. Pensar que um documentário para gerar espaço de escuta faz sentido e é um passo; realizá- lo e fazer com que esse espaço de escuta seja construído com qualidade e sentido é outro. Isto não se faz sem ter uma grande profissional ao lado e envolvida. Acresce o facto de que a Raquel não é apenas excelente realizadora – é também, como bem mencionas, escritora e por isso o seu olhar sobre as mulheres escritoras é também um olhar informado, fundamentado e empático. Acompanhei, depois das filmagens, todo o trabalho de montagem e fui vendo o filme a formar-se diante dos meus olhos, sempre com espanto. E emocionei-me sempre.
O projecto publica desde 2022 o podcast «Todas as vozes». O que estas «vozes» nos contam no podcast difere do que veremos no documentário? O formato é diferente, no podcast concentramo-nos apenas no som...
O que o documentário acrescenta ao som é a imagem. Esta parece ser uma afirmação demasiado óbvia, mas é extremamente importante. A imagem constitui mais um modo de mostrar que é muito difícil, se não mesmo impossível, de definir a mulher de uma forma apenas. A frase famosa de Simone de Beauvoir que cito livremente – «Não se nasce mulher, torna-se mulher» – é colocada em prática diante dos nossos olhos e o documentário mostra que as visões pré-concebidas sobre o que é uma mulher escritora e como ela se deve apresentar não as define. Não existe uma forma de definir uma mulher escritora. O que todas elas falam, o que elas escrevem – o documentário mostra igualmente os livros delas, ouvimo-las e vemo-las a lê-los – e como elas se apresentam dá-nos uma visão panorâmica da sua diversidade, complexidade, riqueza subjetiva ao mesmo tempo que sentimos um sentimento intenso de sororidade. Isto é fabuloso porque muitas não se conhecem, mas a forma de sentir o mundo e de exprimir-se encontra muitos pontos de contacto que identificamos ao longo do documentário.
Um dos pontos de partida do projeto «WomenLit» é abordar a literatura como resistência. Nos casos concretos estudados, trata-se de resistência a quê?
As resistências são sobretudo formas de pensar e escrever que desafiam narrativas de memória hegemónicas e desafiam estereótipos sobre como se deve definir uma mulher. Inscrevem contra-narrativas que não são apenas individuais, mas colectivas também. São formas de inscrever histórias, memórias que são transmitidas coletivamente, através das comunidades, mas também individual e familiarmente, a partir das avós e ancestrais. As mulheres que escrevem guardam histórias e palavras apesar de todas as circunstâncias que poderiam ser adversas. Elas resistem. Todas.
Esta «resistência» através da literatura escrita por estas mulheres é distinta de outras formas de resistência literária ou literatura de resistência do século XX?
Não. Em primeiro lugar, porque esta resistência faz parte da história da literatura escrita por mulheres. Os cânones literários construíram-se, sobretudo, fundamentados no olhar masculino. As mulheres escreveram, escrevem e continuarão a escrever apesar deste olhar. Existe um volume organizado por Inocência Mata e Laura Padilha, sobre mulheres escritoras africanas, publicado pelas Edições Colibri, cujo subtítulo é Vozes de uma margem sempre presente. É um subtítulo particularmente feliz que também se pode aplicar aos meios literários não africanos – nomeadamente brasileiro e português – e até em outros meios que não apenas os literários. As mulheres sempre estiveram presentes, mas sempre lhes foi negada visibilidade nas narrativas de memória, especialmente às que mais abertamente contrariavam modelos impostos. O documentário mostra-nos escritoras de diferentes gerações. Apesar da diversidade geracional, identificamos facilmente pontos comuns que não se constroem somente entre mulheres, mas também entre mulheres ao longo da história mais recente. Naturalmente que muito se alcançou e, no século XXI, a visibilidade das mulheres é seguramente maior do que no século XX. Mas ainda há muito por fazer, sobretudo no que diz respeito às mulheres não brancas, mulheres transsexuais e mulheres que por alguma razão não correspondem ao que se estabeleceu como «normalidade». A resistência apenas deixará de fazer sentido quando o olhar patriarcal e ocidental deixar de ser hegemónico ou de servir como um fiel de balança. Ainda nos falta caminho para isso, mas seguimos e continuaremos a seguir em frente. Por isso também este documentário é um olhar presente que passa pelo passado e orientado para o futuro.
Texto: Isabel Araújo Branco.
Website do projeto: https://womenlit.fcsh.unl.pt/